Quando nos sentamos para comer, a maioria de nós nunca pensa nas questões mais amplas associadas aos nossos alimentos. Mas a comida é profundamente política, ligada à posse da terra, pobreza e riqueza, guerras, corrupção, colonialismo, sexismo e muito mais.
Através da nossa alimentação, do que comemos e até mesmo se comemos, nos conectamos a diversos sistemas sociopolíticos locais, nacionais e mundiais. Nesse contexto, o que escolhemos não comer diz mais sobre quem somos como seres humanos do que os alimentos que consumimos sem pensar.
Aqui, analisamos algumas das questões entrelaçadas com o sistema alimentar global, desde guerras e fome até estruturas patriarcais, violência e capitalismo.
Quem é dono da terra?
Aqueles que possuem terras também têm os recursos necessários para a produção de alimentos. Essas pessoas podem decidir o que produzir, seja carne, leites, ovos, cultivos para alimentar animais criados em fazendas, ou cereais, frutas e vegetais para alimentar as pessoas.
Os grandes proprietários de terras são ricos e politicamente influentes. Eles conseguem manipular políticas públicas para garantir subsídios, que são financiados pelos contribuintes, com a maior parte desses subsídios sustentando a produção de carne e leite em vez de apoiar a produção de vegetais. Isso acontece apesar dos danos ambientais significativos causados pelas indústrias de criação de animais. Isso é o que o jornalista George Monbiot chama de “paradoxo da poluição” — as indústrias mais poluentes são as que mais fazem lobby para conseguir o que querem, desde mais subsídios até a garantia de que não haverá regulamentações que restrinjam suas atividades.
Essa cumplicidade permite que grandes corporações agrícolas e varejistas tenham lucros enormes, enquanto os cidadãos — agora tratados como consumidores — pagam para ter suas decisões influenciadas e, em seguida, pagam novamente para limpar a poluição ambiental causada pela criação de animais.
Quem tem acesso à comida?
Permitir que a fome se estabeleça em uma comunidade, nação ou região é uma decisão política. Pode estar relacionada a muitos fatores diferentes, incluindo falhas na colheita, conflito civil, guerra e corrupção. Qualquer um desses pontos — e frequentemente todos eles juntos — pode levar à fome, mas há outra causa que raramente é discutida: a decisão política de permitir que grandes quantidades das colheitas do mundo sejam destinadas a animais de criação em vez de serem disponibilizadas para pessoas.
Quando fazemos isso, a maior parte das calorias é perdida, tornando o consumo de carne, ovos e laticínios um grande desperdício de recursos do mundo. Esse sistema “incrivelmente ineficiente” significa que as pessoas mais ricas do mundo continuam comendo carne, enquanto os mais pobres podem não comer nada.

A fome é política
Tendemos a pensar na fome como uma calamidade natural, frequentemente associada a condições meteorológicas ruins que levam a colheitas fracassadas. Mas isso não é verdade, segundo Alex de Waal, autor de “Mass Starvation: The History and Future of Famine” (“Fome em massa: a história e o futuro da fome”, em tradução livre). “A fome é um produto político muito específico da forma como as sociedades são administradas, as guerras são travadas e os governos são geridos”, afirma. “O fator predominante na causalidade — em três quartos dos casos de fome e três quartos das mortes por fome — é a agência política”.
Comida, fome e colonialismo: o histórico
De acordo com os pesquisadores Dylan Sullivan e Jason Hickel, dezenas de milhões de indianos morreram de fome no final dos anos 1800 durante várias situações de fome induzidas por estratégias políticas, enquanto os recursos eram desviados para a Grã-Bretanha e suas colônias. E essa não foi a última vez que os colonizadores usaram a fome para reduzir a população nativa indiana. A restauradora e defensora do Programa Mundial de Alimentos da ONU, Asma Khan, disse ao The Guardian: “Eu venho de Bengala, onde a fome dos anos 1940 foi um ato deliberado do governo britânico para desviar arroz para o Exército e deixar meu povo faminto”.
Fome e guerra: o presente
Há muitos exemplos atuais de como restringir o acesso a alimentos pode ser usado para fins políticos. Segundo o Programa Mundial de Alimentos, dez das piores crises alimentares no mundo — incluindo as do Afeganistão, República Democrática do Congo, Síria e Iêmen — aconteceram por conta de táticas de guerra deliberadas que incluem a fome de populações humanas.
No Iêmen, que importa 90% de seus alimentos, 12 milhões de pessoas estão enfrentando a fome enquanto as partes em guerra lançam ataques aéreos em fazendas e portos. Alex de Waal descreve o Iêmen como “a maior atrocidade de fome do nosso tempo”. Ele afirma: “Os Estados Unidos e os países europeus, se realmente se importassem, teriam poder suficiente para fazer com que os sauditas e os emiradenses parassem de bombardear a infraestrutura agrícola, de saúde e de mercado, abrissem os portos e adotassem uma definição muito menos restritiva sobre quais alimentos são permitidos. Eles também precisam iniciar um processo de paz. Esta não é uma guerra que será vencida de uma maneira significativa. É uma fome criada politicamente e terá que ser resolvida por meios criados politicamente”.
Segurança alimentar e mudanças climáticas: o futuro
Em 2023, a insegurança alimentar afetou 281,6 milhões de pessoas e, com a escalada da crise climática, esse número provavelmente vai aumentar. Com o aumento das ondas de calor, chuvas intensas e secas, as colheitas ficam menos previsíveis. Isso, combinado com a escassez de água em muitas regiões, torna a produção de alimentos ainda mais incerta.
Os governos estão fazendo muito pouco para enfrentar a crise climática, e não há dúvida de que a insegurança alimentar e a fome vão afetar muito mais pessoas, provavelmente na África Subsaariana, Ásia e Sudeste Asiático. Mas, enquanto continuamos a pressionar por ações políticas, cada um de nós pode desempenhar nosso papel para reduzir o impacto da crise climática. A melhor maneira de diminuir nossas emissões relacionadas à alimentação e proteger recursos valiosos como a água é adotar uma alimentação à base de plantas.

Patriarcado e alimentação
Ao mesmo tempo, as habilidades e conhecimentos tradicionais que as mulheres têm há gerações foram desconsiderados e desvalorizados. O conhecimento sobre sementes e alimentos foi transferido para corporações multinacionais. E, enquanto as mulheres fornecem a grande maioria das refeições nas casas, a maior parte dos chefs profissionais ainda é formada por homens, com chefs famosos trazendo machismo, agressão e muita carne ao desempenhar este papel. Como diz Asma Khan, “Chefs homens transformaram a culinária em um esporte de combate”.
Patriarcado, comida e guerra
Dois artigos publicados recentemente, ambos profundamente chocantes, nos lembraram como as estruturas de poder patriarcais policiam o acesso aos alimentos. No Sudão, foi relatado que mulheres foram forçadas a ter relações sexuais com soldados sudaneses para conseguir acesso a mantimentos. Na República Centro-Africana, o preço dos alimentos está disparando após o estupro de mulheres e meninas por mercenários russos, o que deixou as mulheres com medo de trabalhar nos campos ou ir aos mercados. Primeiro vem o abuso violento, depois a fome.

Violência e a nossa comida
A maioria das pessoas não apoia a violência, a menos que seja necessária para a autodefesa. A maior parte das pessoas também ficaria horrorizada ao ver um cachorro espancado ou um gato torturado. Mas não dá para fugir do fato de que carne, ovos e laticínios são produtos da violência. A carne é o corpo de um animal abatido. Laticínios e ovos estão disponíveis comercialmente apenas porque os animais usados para obterem esses produtos são aprisionados e só podem viver enquanto continuarem produzindo o suficiente para gerar lucro para quem os explora. Quando a produção de leite, ovos ou filhotes cai, todos os animais no sistema de criação são descartados por meio da violência.

Carne e masculinidade
Por que a percepção tradicional dos conceitos de masculinidade e carne está tão entrelaçada? Isso vem de histórias antigas de homens caçando e matando animais enquanto as mulheres coletavam frutas, nozes e folhas? Ou está mais conectada ao fato de que a carne tem sido — e continua sendo — um direito dos privilegiados e que a percepção de sucesso e masculinidade sempre estiveram conectadas? Há muita coisa em jogo aqui, mas pesquisas mostram consistentemente uma conexão entre pessoas que se identificam como mais masculinas e a quantidade de carne que consomem. Além disso, há também noções de liberdade pessoal, tradição, uma tendência a crenças autoritárias e a necessidade de exibir força, poder e sucesso. Há sinais de mudança, com muitos homens escolhendo mostrar sua força através da compaixão em vez da dominação, mas a ligação continua forte e é ativamente reforçada pela própria indústria da carne.

Feminismo e alimentação
Carne, ovos e laticínios são questões relacionadas ao feminismo. A produção de carne só é possível porque o corpo de uma mãe foi explorado. No caso da vitela, além dessa exploração, o filhote também é tirado dessa mãe para ser abatido. Além disso, a produção de leite só é possível porque animais são inseminados artificialmente, depois seus bebês são levados para não beberem o leite que foi feito para eles. Ovos só são produzidos por conta da capacidade reprodutiva de galinhas e patas, mas essas mães nunca chegam a chocar seus próprios ovos.
Enquanto as fêmeas são constantemente exploradas por conta de suas capacidades reprodutivas para a produção de carne, leite e ovos, os machos também sofrem com a indústria pecuária. Eles são mantidos como “reprodutores” e mortos quando sua fertilidade diminui. Na indústria do leite, os bezerros são apenas um subproduto da produção. Os bezerros machos são abatidos ao nascer se seus corpos não puderem ser monetizados de outras maneiras. Da mesma forma, milhões de pintinhos machos são abatidos com apenas um dia de vida pela indústria de ovos – triturados vivos ou mortos por gás, já que pintinhos machos não podem botar ovos.
A justiça reprodutiva é um dos principais motivos que levam tantas pessoas a não comerem carne, ovos ou laticínios.
Mulheres que alimentam suas comunidades
Em todo o mundo, mulheres se unem para apoiar seus bairros através de programas de justiça alimentar comunitária. Nas favelas de Buenos Aires, por exemplo, mulheres trabalham sem remuneração em cozinhas comunitárias, juntando seus recursos e doando seu tempo para garantir que ninguém passe fome. Elas doam alimentos nas calçadas durante o frio do inverno e distribuem bebidas quentes, ao mesmo tempo que ajudam crianças com os deveres escolares. Juntas, elas conseguem se proteger melhor contra a violência doméstica e a repressão policial e, mais uma vez, vemos como a alimentação se torna um ato político. É um símbolo de resistência, solidariedade e cuidado comunitário em um sistema que tenta acabar com a dignidade e a sobrevivência dos mais vulneráveis. Cada prato servido é um desafio contra um sistema injusto, e cada gesto de generosidade alimentar é um passo em direção à construção de um mundo mais igual.
Escolhas alimentares e capitalismo
Muito se fala sobre nossa liberdade de escolher o que comemos. Para as pessoas que têm a sorte de ter essa escolha, isso é um presente e um privilégio. Mas nós realmente escolhemos de maneira totalmente livre? Não somos apenas influenciados pela nossa própria história, região, cultura e tradições, mas também pela acessibilidade, disponibilidade e manipulação de uma das indústrias mais poderosas do mundo.
Se realmente tivéssemos liberdade de escolha, iríamos optar por alimentos altamente processados que causam grandes danos a nós, aos animais e ao planeta, ou escolheríamos alimentos deliciosos que nos nutrem e nos fazem bem, ao mesmo tempo que não causam danos ao meio ambiente?
A alimentação é mais do que nossa nutrição pessoal, é uma maneira de enriquecer grandes corporações e seus acionistas, mas isso só acontece quando a produção dos alimentos é extremamente cara (como a carne de vacas) ou quando o alimento é processado e o “valor” é adicionado. E assim, grandes multinacionais encontram maneiras de nos manter consumindo alimentos industrializados de origem animal. Tornam a comida “viciante”, pressionam por subsídios que fazem esses produtos parecerem mais baratos do que realmente são e utilizam estratégias de marketing que nos vendem um estilo de vida ou explora nossas inseguranças sobre pertencimento e identidade.
Perguntas que não fazemos sobre a comida
Programas de TV populares sobre fazendas e culinária e canais on-line nos falam cada vez mais sobre a importância de saber de onde vem nossa comida. Mas esses programas fazem parte de ações de marketing e nunca nos contam a história completa. Na narrativa do “da fazenda para a mesa”, eles nos mostram fazendas limpas e de aparência saudável, que não se assemelham a nenhuma fazenda que tenha sido investigada por defensores da causa animal, e nunca nos mostram a realidade de como os animais são industrialmente abatidos.
Não nos dizem que a carne que comemos causa poluição da água e do ar, que cria mortes em massa nos rios e agrava a asma dos residentes que vivem perto das fazendas. Não nos contam sobre o trabalho forçado na indústria ou sobre os impactos devastadores na saúde mental das pessoas encarregadas de abater animais todos os dias. Não nos dizem que produtos de origem animal – carne, peixe, laticínios e ovos – são os piores para o meio ambiente e que não podemos esperar enfrentar a crise climática enquanto continuarmos a consumir esses produtos como fazemos hoje.
Esses fatos são respaldados por evidências científicas e estão disponíveis gratuitamente, mas precisamos procurá-los. E escolher se educar sobre questões que impactam nossas próprias vidas e as dos outros também é um ato político.

O veganismo é um ato político
Se temos o privilégio de escolher o que comemos, boicotar produtos associados à desigualdade, insegurança alimentar e poder patriarcal — porque causam grandes danos às pessoas, aos animais e ao planeta — é um ato altamente político.
O veganismo é político ao rejeitar um sistema antigo, desatualizado e prejudicial e, em vez disso, direcionar nossas intenções para um mundo mais gentil, mais igualitário e mais justo.
É um estilo de vida que afirma que riqueza e poder não dão a ninguém o direito de destruir nosso planeta e causar imenso sofrimento, nem dá o direito de comer enquanto outros passam fome.
Ele demonstra nossos próprios valores centrais de compaixão e nossa crença de que os seres humanos não são os únicos que importam.
O veganismo é uma declaração ousada e definitiva de que o sistema que temos – de políticos sendo manipulados por corporações e falhando em agir sobre as crises ambientais que enfrentamos – é inaceitável, e que não queremos fazer parte disso.
O veganismo é mais do que um princípio ou sistema de crenças; também é uma ação. Ele age ao retirar apoio financeiro às indústrias que causam danos generalizados.
Por fim, o veganismo é político por mudar o mundo para melhor.