Coautora do livro Pandemias, Cynthia obteve seu doutorado em Zoologia (Biologia Evolutiva/Cognição Animal) pela Universidade de Oxford. Seu doutorado foi seguido por dois estudos com bolsa (em Oxford e no Brasil), além de vários projetos de pesquisa para instituições do Reino Unido, Estados Unidos e Brasil. Como cientista, Cynthia publicou vários artigos sobre temas que vão desde a evolução da cognição avançada e epidemiologia até a modelagem matemática da distribuição de animais com base no clima. Desde 2005, está envolvida em vários projetos de pesquisa em saúde global, métricas e sustentabilidade. Atualmente, ela estuda a saúde e o bem-estar dos animais de criação.
A proibição da produção, comércio e venda de animais silvestres para consumo nos protegeria de futuras pandemias?
A produção (ou caça), o processamento e a venda de espécies de animais silvestres para consumo, particularmente em parcas condições de bem-estar, saúde e saneamento, amplificam muito o risco de que cepas virais hospedadas em animais silvestres sejam transmitidas às populações humanas. Foi o caso, por exemplo, da epidemia de Sars e da pandemia de Covid-19. No entanto, os riscos de surtos de doenças infecciosas estão longe de se restringir ao comércio e consumo de animais selvagens. Os sistemas intensivos de pecuária, meio pelo qual a maior parte da carne é produzida no mundo atualmente, também criam condições ideais para o surgimento de cepas virais altamente patogênicas, bem como propiciam o veículo ideal para a infecção de seres humanos. Foi o caso, por exemplo, da pandemia de influenza (gripe suína) de 2009, juntamente com as múltiplas fontes da gripe aviária de alta patogenicidade, atualmente uma grande ameaça à saúde mundial. Nos últimos casos, galinhas e porcos fizeram a ponte genética entre o vírus selvagem e o vírus que finalmente se espalhou na população humana.
Por que a maneira como tratamos os animais, como galinhas e porcos, é importante para o surgimento de pandemias?
Porque espécies como galinhas, porcos e bois agem como hospedeiros intermediários ou amplificadores por meio dos quais os patógenos podem evoluir e se espalhar para os seres humanos. Todos nós aprendemos durante esta pandemia de Covid-19 que boa saúde, sistema imunológico forte, distanciamento social, banho de sol e condições sanitárias adequadas são importantes para prevenir e combater infecções. O oposto dessas condições está presente na maioria das instalações de produção animal. Nesses locais, grandes populações de animais são confinadas a altas densidades em ambientes fechados e precários. Além disso, altos níveis de poluentes aéreos, como amônia e poeira fecal, que naturalmente resultam da presença de altos volumes de resíduos de animais, são frequentemente encontrados nessas instalações. Não é de surpreender que o sistema respiratório dos animais e suas primeiras barreiras de defesa contra as infecções sejam frequentemente comprometidas. Nas fazendas de suínos, por exemplo, as doenças respiratórias são generalizadas, pois a maioria dos porcos experimenta alguma forma de patologia pulmonar, incluindo pneumonia, durante a vida. A imunossupressão induzida pelo estresse crônico (em decorrência de confinamento, agressão, privação de ambientes que propiciem comportamento naturais e falta de higiene) também é uma realidade nesses sistemas. Essas condições permitem não apenas a transmissão rápida de infecções, mas, o que é mais preocupante, que diferentes cepas virais se misturem nos hospedeiros e combinem seu material genético, o que levou várias vezes ao surgimento de vírus que também podem infectar seres humanos.
Quais foram as origens dos surtos de doenças infecciosas com potencial pandêmico no século passado?
A lista a seguir descreve a provável origem de epidemias e pandemias que surgiram no século passado, todas associadas à caça ou produção e venda de animais para consumo humano. Ebola: morcegos; HIV: primatas; Sars: civetas; Sars-CoV-2 (Covid-19): pangolins; gripe H1N1: porcos; vários surtos de influenza aviária (gripe aviária): galinhas.
O que é resistência a antibióticos?
Os antibióticos agem matando bactérias diretamente ou reduzindo sua capacidade de crescer e se reproduzir. No entanto, eles podem parar de funcionar se as bactérias encontrarem formas de combater suas ações, por exemplo, alterando sua estrutura para que o antibiótico não as reconheça, ou neutralizando diretamente (por exemplo, digerindo) o antibiótico. Essas habilidades podem ser adquiridas fortuitamente por mutação ou pela incorporação de genes de outras bactérias que possuem essas habilidades. Quanto maior for a exposição a antibióticos, maiores as chances de que as habilidades que conferem “resistência” a eles se espalhem.
O que os animais da pecuária têm a ver com a resistência a antibióticos?
Embora parte do problema seja o uso excessivo de antibióticos pela população humana, a maioria dos antibióticos (acima de 70% no mundo) não é usada em humanos, mas em animais criados em sistemas intensivos. Nesses sistemas, os antimicrobianos são amplamente utilizados não para tratar animais doentes (o que seria justificável), mas profilaticamente, para garantir a sobrevivência de animais de saúde frágil devido às condições insalubres das fazendas industriais. Não é de surpreender que bactérias resistentes a antimicrobianos tenham sido isoladas em vários animais fornecedores de alimentos e em produtos deles originados.
Como a resistência a antibióticos se espalha de animais de fazenda para humanos?
Uma maneira de bactérias resistentes a antibióticos passarem desses animais para os humanos é por meio de produtos de origem animal. Por exemplo, as mesmas cepas de escherichia coli ST131, que são responsáveis por milhões de infecções por ano e se tornam resistentes a vários medicamentos, foram encontradas em amostras de carne de aves e suínos vendidas em supermercados e em amostras de urina e sangue de pacientes diagnosticado com infecções extraintestinais. Em Hyderabad, na Índia, amostras de carne de frango vendidas em açougues foram contaminadas com uma superbactéria semelhante. No Brasil, a Staphylococcus Aureus Resistente à Meticilina (SARM) foi identificada em amostras de leite. Nesse país, cepas bacterianas resistentes a múltiplas drogas também foram identificadas na carne suína e de frango. Na China, genes idênticos que conferem resistência a antibióticos para a e. coli foram detectados em amostras de carne em açougues e em pacientes humanos. Nos Estados Unidos, 75% das bactérias encontradas pela Food and Drug Administration na carne dos supermercados eram resistentes a antibióticos. A contaminação ambiental é outra via de transmissão. As bactérias podem se propagar pela água e pelo solo e contaminar outros produtos agrícolas por meio do uso de resíduos animais como fertilizantes.